A enfermeira Claudia Stein estava se sentindo bem quando iniciou o turno de trabalho na tenda de atendimento e triagem para pacientes de covid-19 da Unidade de Pronto Atendimento (UPA) Moacyr Scliar, na zona norte de Porto Alegre, às 19h do dia 25 de novembro. Por volta das 23h, começou a sentir um mal-estar, a ponto de estar próxima de desmaiar. Foi acudida por colegas, que mediram a sua temperatura: 38,8º. O próximo passo foi medir o nível de saturação de oxigênio no sangue. Deu 91. “Abaixo de 89 é caso de entubar”, explica. Foi então encaminhada às pressas para o Hospital Divina Providência. “Eles fizeram a tomografia e eu tinha 50% de um pulmão comprometido e 20% do outro”.
Após 18 dias de afastamento, Claudia está recuperada da covid-19. Entre idas e vindas do hospital, não precisou ser internada, mas ainda enfrenta os efeitos do vírus no organismo. Em razão disso, voltou ao trabalho para o atendimento com pacientes não covid-19. “Não sei se vou ficar sequelada ou não porque preciso esperar 40 dias para fazer uma tomografia, mas ando sempre cansada. Eu, que não tenho nenhuma comorbidade, foi bastante grave, fiquei bem doente, fiquei com dificuldade para fazer as coisas, para caminhar, ainda estou em recuperação”.
Às vésperas das festas de Natal e Ano-Novo, Porto Alegre e o Rio Grande do Sul vivem um novo pico da covid-19. Nesta terça-feira (22), pela primeira vez desde o início da pandemia, um boletim da Secretaria Estadual de Saúde registrou mais de 100 mortes confirmadas em 24 horas. A ocupação de leitos de UTI no Estado, que chegou a um pico de 742 pacientes de covid-19 simultaneamente internados em 19 de agosto, antes de começar a cair, bateu em 959 no mesmo dia 22 de dezembro. Independente de qual for o indicador que se olhe, o pior momento da pandemia ou está ocorrendo neste mês ou está próximo de ser superado.
O sentimento de Claudia é de esgotamento, físico e emocional. Como chefe de equipe, percebe que há uma “sensação de desespero” compartilhada por todos em seu local de trabalho. Ao mesmo tempo em que vê colegas adoecendo, em alguns casos até morrendo, a pandemia, que parecia arrefecer, agora volta com força total. “Tu já ouviu a expressão enxugar gelo? É essa expressão que coloco para ti. Com o detalhe de que a gente está com as mãos queimadas de tanto enxugar gelo”.
Para piorar, cada colega que se afasta precisa ser coberto por outro. Claudia diz que tem um “banco de horas eterno” à espera de ser usufruído em algum dia no futuro, mas que, no momento, não pode deixar as colegas sozinhas, até por isso decidiu por retornar ao trabalho e não pedir afastamento. “A gente tenta cobrir ao máximo a escala, porque, quanto mais furo tiver na escala, mais risco tu corre. Mas a gente está esgotada”, diz, acrescentando que outros quatro profissionais da UPA já estão “encostados” no INSS. “Eu não tô tão doente que eu não possa trabalhar em alguma área, então estou no atendimento não covid, porque aí eu não preciso ficar paramentada com aquele plástico todo, porque eu ainda tenho uma certa canseira. É uma coisa inexplicável. Eu nunca na minha vida tive alguma coisa que me deixasse tão ruim, tão doente e que me deixasse tão prostrada numa volta”.
“A sensação que a gente tem é um pouco de anestesia”, corrobora Denusa Wiltgen, Coordenadora das Unidades de Terapia Intensiva e Supervisora da Unidade de Internação Covid na Santa Casa de Misericórdia de Porto Alegre.
Desde março na linha de frente do enfrentamento à covid-19, ela diz que, pela queda nos casos no mês de outubro, a expectativa que tinha era de que o período de festas seria mais tranquilo. “Não sei se era um sonho ou uma vontade de que a gente passasse por um período de calmaria”, diz.
Diante do novo pico de covid-19, ela diz que os profissionais de saúde acabam tendo o desafio redobrado de buscar forças para garantir o melhor tratamento possível para os pacientes. “Eu diria que no momento em que as pessoas estão desgastadas pelo ano todo, que foi por si só, muito duro, a atenção tem que ser redobrada para não ter erros. Então, a gente fica muito mais cansada do que naturalmente ficaria”, diz.
Aline Zimmermann de Azambuja, médica internista na Emergência do HCPA, também diz estar cansada. “Estou desde o início na linha de frente, desde março, praticamente trabalhando quase todos os dias com a covid. A gente tem que muitas vezes engolir o choro, muitas vezes ser forte, porque a gente se depara com pessoas que perdem os familiares e estão doentes, também numa situação grave, e a gente tem que dar o apoio. E não podemos esconder a gravidade da doença, mas ao mesmo tempo temos que dar uma esperança para essas pessoas. Então, é uma situação que tem que ser forte também para superar”, afirma.
Ela avalia que, atualmente, os profissionais de saúde conhecem um pouco mais do comportamento da doença em relação aos primeiros meses da pandemia. “Isso nos deixa mais ‘confortáveis’ para lidar com a evolução e saber o que fazer com o paciente”.
Por outro lado, pontua que houve uma “normalização” da sobrecarga de trabalho de quem atua na linha de frente da covid-19, mas também de quem atua em outras áreas de hospitais, uma vez que não houve grandes acréscimos de equipe no Clínicas em relação a anos anteriores. “Sobrecarrega a equipe, porque a gente tem praticamente o mesmo número de profissionais para atender toda a demanda de pacientes não covid e toda a demanda de covid”.
Denusa, da Santa Casa, diz que, no dia a dia, vê muitos colegas entrando em situação de burnout, casos de estresse crônico que levam à exaustão física e emocional, muito pelo fato de estarem vendo pessoas próximas e familiares adoecendo. “O que mudou do pico para cá foi o nosso nível de cansaço e talvez um pouco de resignação de ver que a gente não vai passar por um período de calmaria”, afirma.
O que frustra o enfermeiro Ismael Miranda da Rosa, que trabalha no Hospital São Camilo, de Esteio, cidade onde mora, e na UPA de Sapucaia do Sul, é que os profissionais de saúde já aprenderam muito sobre o comportamento da doença e sobre o que têm que fazer para dar um tratamento de maior qualidade aos pacientes, mas que, no momento, acaba não tendo como aplicar “as melhores práticas”.
“O covid não tem cura, não tem tratamento específico, mas tem medidas para os sintomas que funcionam, que nesse um ano há estudos que já apontam. A anticoagulação, o uso de enoxaparina, o uso de corticoides como dexametasona, uma medida de amenizar sintomas e melhorar a qualidade de vida, consequentemente diminuir danos para as pessoas. Por exemplo, o pessoal tem um dano respiratório no pulmão, se tu conseguir fazer essa intervenção no primeiro momento que ela tiver sintomática, você vai minimizar o prejuízo posterior que ela vai ter e possivelmente a necessidade posterior de internação”, diz. “Nós temos um manejo para quem está internado que é muito eficiente, mas o manejo de quem vai para a unidade de pronto atendimento, que a gente considera como tratamento ambulatorial, ainda continua com os mesmo protocolos incipientes [dos primeiros meses]. Essa é a minha frustração. A gente fica um pouco inerte por essas coisas não estarem ao alcance da população. Isso traz uma fadiga muito grande”.
Para piorar, nos dois locais em que trabalha, as tendas externas para triagem e atendimento preliminar de pacientes com covid-19 foram desmontadas no período em que houve redução de casos, bem como houve redução do quadro de profissionais, especialmente de médicos. “Com essas medidas, você também acaba levando os indivíduos para dentro do serviço. A questão do controle de infecção e de distanciamento ficou mais difícil de organizar, porque tu acaba trazendo tanto os covid positivos, que estão vindo com sintomas, como aqueles que estão com sintomas e estão em investigação da doença, mas não têm ainda o diagnóstico confirmado. Então, tu acaba misturando, coloca os indivíduos sintomáticos respiratórios nas mesmas alas. Quem não tem, vai acabar tendo. E, quem tem, volta para lá. Para nós, enquanto profissionais, isso potencializa o nosso risco de contágio”, diz.
Diante desse cenário, Ismael diz que muitos problemas que poderiam ser enfrentados na porta de entrada acabam sendo agravados. “Tu vê que pessoas retornam e retornam mais graves. E, quando elas retornam mais graves, tu tem a sensação de que tu perdeu a janela de melhora e que tu sabe o que deveria ter sido feito para a melhorar e não tem isso a mão”.
Os casos estão mais graves?
Claudia é uma das cinco enfermeiras do turno da noite na UPA em que trabalha. Uma delas já tinha contraído o vírus em agosto. Em novembro, as outras quatro pegaram o vírus. “A gente viu que veio numa força muito maior. Os pacientes vêm em maior número, mais graves”, diz.
O que chamou a atenção no seu caso foi o fato de ter piorado muito rapidamente. Um cenário que diz estar vendo em muitos pacientes que estão chegando à UPA Zona Norte neste estágio da pandemia. “Quando eu me senti mal, eu já estava bem mal. E a gente percebe isso nos pacientes. O paciente chega para nós e diz ‘estou com uma espécie de canseira, dor de cabeça e sem fôlego’ e aí, quando tu vai ver, estão saturando super mal”.
Ismael também tem a percepção de que os pacientes estão chegando à UPA em estado mais grave. Segundo ele, as pessoas costumavam chegar com queixas respiratórias leves. “Inicialmente, a gente tinha uma grande demanda por afastamento. Hoje, a gente tem as pessoas doentes, com muita falta de ar, com disfunções cardíacas, com sensação de desequilíbrio. As queixas se tornaram mais graves e de fato os pacientes estão mais graves. Não era todos os dias que a gente encaminhava pacientes para a internação. Hoje, é todos os dias”, afirma.
Denusa afirma que não é possível dizer que os casos estão mais graves no momento, mas que a sua percepção é de que os pacientes estão demorando para procurar ajuda e, quando enfim chegam a um hospital, estão em estágio mais avançado da doença. “As pessoas tendem a fugir do hospital ou tentar tratamentos alternativos, não comprovados, na expectativa de uma melhora que retire a necessidade de hospital. Isso faz com que, às vezes, quando a pessoa chega, ela já chega com uma necessidade premente, principalmente, de manobras respiratórias, que, se ela tivesse chegado um pouco antes, talvez tivesse um desfecho diferente”, diz.
Já Aline Azambuja diz que tem percebido que pessoas que normalmente não internariam em uma UTI e pessoas jovens estão apresentado formas graves de covid. “Isso tem deixado a gente bastante assustado, porque a minha impressão é que não só pessoas com os riscos clássicos que os estudos apontam, como diabetes, hipertensão e obesidade, mas também sem nenhum fator de risco conhecido têm apresentado uma doença grave, que é o que gente atende no Hospital de Clínicas”, diz.
O relato dos profissionais de saúde ouvidos para essa reportagem é de que, em termos de equipamentos e suprimentos, a situação nas unidades de saúde e em hospitais está melhor do que no início da pandemia. No caso da UPA Zona Norte, Claudia diz que o problema é que não há profissionais interessados em preencher as vagas abertas quando alguém adoece ou é vitimado pelo vírus. “Tá faltando gente porque não tem gente, entendeu? A gente tinha uma escala boa, mas estamos com falta de pessoal em função de que tem muitos dos nossos doentes”.
Segundo Aline, até o momento, o Clínicas tem conseguido fazer um gerenciamento de leitos que garanta que nenhum paciente em estado grave deixe de receber atendimento. Contudo, diz que a sensação compartilhada pela sua equipe é de que, em algum momento, pode faltar espaço para os pacientes graves, também pelo fato de que pacientes de outras cidades acabam procurando ou sendo encaminhados para tratamento no Clínicas.
“Os pacientes ficam muito tempo internados, não é uma internação normal de poucos dias, que a gente possa rodar, digamos assim, um paciente sai e entra outro. Não, ficam bastante tempo, o que é uma dificuldade maior na pandemia”, diz. “Nas últimas semanas, foi um esforço quase sobre humano para conseguir atender todo mundo. A gente não consegue conversar com todos, avaliar todos de forma adequada. Isso gera um pouco de ansiedade, com certeza, pro profissional de saúde”.
A pandemia ainda não acabou
Os quatro profissionais de saúde ouvidos pela reportagem defendem que a população precisa se conscientizar que a pandemia ainda não está no fim. “Não diria que ela está longe de acabar porque ainda tem o desafio da vacina, algumas em fase final de testes, mas também não é 100% uma garantia, porque temos visto casos de reinfecção da doença. Ou seja, a imunidade não parece duradoura”, diz Aline.
Para Ismael, a “volta ao normal” não ocorrerá tão cedo. “Eu tenho claro para mim que nós ainda vamos muito longe aqui no Brasil. Talvez em 2023 esteja mais próximo de tranquilidade. 2021 ainda vai ser um ano muito duro para nós, prevê”.
Já Denusa destaca que as hospitalizações são os “5% da estatística” que vêm à tona, o que só reforça que o vírus ainda está circulando muito no Estado. “A gente tem que ter responsabilidade pelo próximo, o sentimento de empatia precisa preponderar nesse momento. A gente precisa fazer um equilíbrio das nossas liberdades com a nossa vida em sociedade. Que a gente procure preservar as pessoas que vivem ao nosso redor, que a gente ama, e que compreenda que, se a convivência é necessária, ela precisa ter um distanciamento corporal, que o uso da máscara em ambientes fechados, principalmente, é primordial.”
Ao final da conversa com a reportagem, Claudia deixou um pedido. “Por favor, faz uma matéria dizendo para as pessoas ficarem em casa, não se juntarem, não saírem por aí que nem loucos. A gente está esgotado, a gente não tem mais leito, a gente não tem mais pessoal, a gente está muito esgotado. Acho que esse sentimento que eu estou te dizendo é o de todos os meus colegas que eu vejo todos os dias. A gente já chega para trabalhar pensando qual de nós, amanhã, vai estar contaminado.”
Fonte Luís Eduardo Gomes | Sul21