Mães Indígenas da UFRGS dizem ser “passarinho preso na gaiola”

Mães Indígenas da UFRGS dizem ser “passarinho preso na gaiola”

“A gente vem de uma realidade bem diferente, de uma realidade mais rural. A gente vem para a cidade e se depara de ficar com um apartamento mínimo, nos sentimos como um passarinho preso na gaiola”. A autora da frase é Maria, 30 anos, indígena do povo Baré, que habita o noroeste do Amazonas.

Estudante da Faculdade de Medicina da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) desde 2019, ela é uma das indígenas que, desde o último domingo (6), participam da ocupação de um prédio abandonado próximo à universidade. A ocupação tem como objetivo chamar a atenção da universidade e de outros poderes para a necessidade de construção de uma casa do estudante indígena, uma vez que, na atual Casa do Estudante Universitário (UFRGS), eles conviveriam com preconceitos e com a dificuldade de assimilação de suas práticas culturais pelos demais colegas. Um problema sentido, sobretudo, pelas estudantes que são mães.

“Infelizmente, a gente está nessa situação há anos. Tenho amigas que já se formaram que tinham que esconder seus filhos na Casa do Estudante. Tinham que tomar banho de madrugada e não podiam fazer nenhum barulho, transitar o mínimo possível. Uma situação de presídio, de estar se escondendo, fazendo algo errado. Isso é desumano, tira a dignidade de qualquer pessoa”, relata Maria.

Ela é mãe de duas crianças, uma menina de 5 anos e um menino de 9 anos, que até o início do ano moravam com o pai, também estudante de Medicina, em Uruguaiana. Um dos motivos pelos quais não moravam juntos era justamente o regramento da CEU, que impede que os estudantes morem com os filhos em suas dependências. “Eu nunca tinha ficado distante dos meus filhos, sempre foi tudo da minha responsabilidade”, diz.

Estudante do 3º semestre de Enfermagem, Tatiana Kaingang, 24 anos, natural da Aldeia da Serrinha, em Ronda Alta (RS), morava na CEU com sua filha mais nova, de 1 ano e 9 meses, mas, após as constantes reclamações de sua colega de quarto, precisou deixar o local e alugar outro espaço no início deste mês.

“Eu passei muitas dificuldades, porque tenho filha, e o pessoal não aceita quem tem filhos na Casa do Estudante. Tanto é que estou pagando um aluguel, que é bem caro, e para se manter numa cidade grande não é fácil, ainda mais com uma criança”, diz Tatiana. Pelo aluguel de um quarto, na Rua Riachuelo, paga R$ 750. “Na verdade não é uma casa, é só quartinho”.

Segundo Tatiana, que tem outra filha que mora com a avó, as principais reclamações dos demais estudantes que moram na CEU é quanto ao choro das crianças.

“O pessoal reclama muito, tanto é que eu fui levar ela junto e a colega de quarto não aceitou e eu tive que sair. Aí eu tive que procurar um lugar para ficar com a minha filha”.

As estudantes destacam que as reclamações não dizem respeito apenas aos filhos das mães que moram no local, mas também às visitas que recebem de outras indígenas.

“Onde a gente vai, levamos os nossos filhos. Quando elas iam visitar a gente, sempre implicavam por casa das crianças. Como vamos nos sentir bem num espaço em que não aceitam nossos filhos?”, diz Jaqueline de Paula, também da etnia Kaingang. “As minhas crianças não são cuidadas apenas por mim. Se eu tô num coletivo indígena, cada um cuida e ajuda como pode, isso é natural nas nossas culturas”, complementa Maria.

Jaqueline acrescenta ainda que também há um estranhamento cultural que dificulta a adaptação das estudantes indígenas à CEU, o que tornaria essencial a construção de uma casa específica para eles.

“A gente também sofre muito preconceito lá dentro, mesmo dos nossos colegas da CEU. Dentro da casa, a gente não pode fazer confraternizações porque sempre incomoda eles [outros estudantes]. Eles pegam e fazem o que eles querem, mas a gente sempre recebe notificação deles reclamando da gente. E a gente não pode reclamar deles.”

Estudante de Serviço Social desde 2020, ela destaca que as confraternizações são uma prática que faz parte das tradições cotidianas dos estudantes indígenas. “A gente tem uma cultura diferente. A nossa forma de passar conhecimento é oral, então a gente conversa bastante. A gente sentia muita pressão de não aceitarem isso”.

Para Maria, essas dificuldades de convívio acabam por fazer com que os estudantes indígenas não se sintam à vontade na CEU.

“E isso afeta tudo, tua saúda mental , teu espírito no dia a dia. A gente se depara com uma sociedade muito individualista, enquanto a gente é muito do coletivo. Se um irmão fica doente, ficamos doentes também. Entendemos que somos um só, que somos um grupo, que não tem como separar um do outro, isso é muito forte na cultura indígena”, explica.

Negociações em andamento

O prédio ocupado pelos estudantes indígenas é de propriedade da Prefeitura de Porto Alegre e abrigou no passado a Secretaria Municipal de Indústria e Comércio de Porto Alegre. Posteriormente, foi cedido para a UFRGS para abrigar um polo de tecnologia, mantendo ainda em sua estrutura uma placa que diz “Rua da Inovação”.

Atualmente, está completamente degradado, sem portas, com as janelas quebradas, laterais pichadas e em condições insalubres. Ainda assim, logo após a ocupação, agentes da Polícia Federal e da Guarda Municipal estiveram no local para remover os estudantes. Após um acordo, o grupo conseguiu o direito de permanecer ocupando um espaço no primeiro andar do imóvel.

Tailine Kaingang, integrante do Coletivo dos Estudantes Indígenas da UFRGS e uma das organizadoras da ocupação, diz que a ideia do movimento é manter a ocupação até que uma nova casa do estudante indígena seja disponibilizada. “A gente vai perdurar até ter uma resposta concreta da UFRGS”, diz.

Na tarde desta terça-feira (8), a UFRGS informou que a vice-reitora Patrícia Pranke, reitora em exercício no momento, irá receber um grupo de representantes dos indígenas às 10h de quarta-feira.

Anteriormente, a universidade havia divulgado uma nota informando que estudantes indígenas têm vaga garantida em uma das três moradias da CEU e que pais ou mães podem optar pelo auxílio-moradia.

Tailine explica, contudo, que as estudantes indígenas sentem falta de um espaço em que possam viver de acordo com os costumes de suas comunidades.

“A gente tem necessidade de estar com nossos anciões, de fazer os nossos artesanatos, os nossos cantos, num espaço que a gente viva coletivamente. E, principalmente, ter um espaço para as nossas crianças viverem livres, correndo e brincando, em vez de deixar trancado num quarto da CEU, que não é nem permitido que eles fiquem”.

Neste sentido, ela diz que a reivindicação do movimento não engloba algum número específico de vagas, porque o principal seria ter o espaço para usufruto coletivo dos indígenas. “A gente tá lutando principalmente pelas nossas crianças, não queremos um número determinado de vagas”.

Segunda a organização, mais de 70 pessoas estavam envolvidas com a ocupação desde o domingo, entre apoiadores e pessoas que foram ao local levar donativos.

Entre os apoiadores estava Dona Iracema, 59 anos, liderança indígena da Capital. Na avaliação dela, o maior problema é a falta de retorno pela universidade para as reivindicações dos indígenas.

“Os representantes da UFRGS não querem nos ouvir. Há anos que nós pedimos essa casa do estudante, porque temos filhos, temos netos, mas eles dizem que já tem e ‘por que querem mais?’ Mas nós não queremos mais, ali tem pessoas que querem descansar e nós temos nossas crianças que querem brincar, querem correr, só isso. É só entender esse lado”, diz.

Ela complementa ainda que a questão da falta de um espaço adequado é apenas uma das dificuldades que os indígenas enfrentam na universidade. “Nós não temos direito de falar dialetos, não temos direito de cantar os nossos cânticos, fazer as nossas danças, por isso queremos esse espaço. Nós não somos acostumados a ficar numa caixinha, fechados, nossos filhos também não. Eles querem vir na sombra, olhar as folhas, nós somos assim”.

Fonte DO SUL 21

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