“Somos trabalhadores que estamos desesperados por melhores condições para nós e para a nossa classe. A gente está cansado.” O depoimento é de Simões, 37 anos, motoboy que opera na cidade de Niterói (RJ).
Com condições precárias de trabalho, as dificuldades dos entregadores de serviços de delivery têm sido ainda mais intensas neste período de pandemia do novo coronavírus (Sars-Cov-2).
Sem vínculo formal com as empresas e, consequentemente, sem os benefícios e garantias asseguradas pela CLT, os autônomos têm que se sujeitar a longas jornadas de trabalho para conseguir um sustento mínimo, agora com o agravante da exposição ao vírus.
Através de objetivos em comum, entregadores têm se juntado, em diversas regiões do Brasil, para reivindicar melhores condições de trabalho aos aplicativos detentores dos serviços. Com a crescente mobilização, os trabalhadores organizaram uma greve geral, com paralisação dos funcionários no dia 1º de julho, quarta-feira, em todo o país.
“Nos unimos por necessidades em comum, não tem sindicato. Quem chegou para apoiar, chegou depois. Eu me exponho porque a questão é urgente”, diz Simões. A greve está marcada para o próximo dia 1º, quarta-feira.
Entre as tantas reivindicações, as principais são: melhores condições de trabalho durante o período da pandemia do novo coronavírus (Sars-Cov-2), aumento no pagamento das corridas e da taxa mínima das entregas, que têm caído ainda mais na medida em que aumenta a quilometragem e o número de entregas pelo valor pago; seguro de vida; cobertura contra roubos e acidentes; vale-alimentação; além de um voucher para compra de equipamentos de proteção individual.
Os trabalhadores pedem ainda fim dos sistemas de pontuação e bloqueios e exclusões indevidas. “A luta dos entregadores é para ser reconhecido o vínculo empregatício. Eles [os empresários] falam que esse é o tipo de emprego que o colaborador faz o horário dele. Mentira. Quem faz meu horário são minhas dívidas”, diz Paulo Lima, também conhecido como Galo, de 31 anos.
Muito trabalho, baixa remuneração
“Em um dia trabalhando muito, eu conseguia fazer R$ 100. Pelo tempo de trabalho é muito pouco, principalmente se você tirar a gasolina, manutenção da moto, alimentação. É uma semi-escravidão”, denuncia Galo.
Com o desemprego em alta no país e a situação agravada pela pandemia do novo coronavírus, houve um aumento expressivo na quantidade de trabalhadores, que viram nas entregas uma opção para obter renda. Segundo os eles, esse aumento coincide com a diminuição nos valores pagos pelos aplicativos de delivery.
“Parece que agora estamos recebendo ainda menos. Eu trabalho doze, treze horas por dia pra conseguir R$100,00 ou um pouquinho mais, não passa disso. Então eu vou para a rua para fazer uma meta, não importa se tiver que trabalhar por 24 horas. Só assim conseguimos tirar o mínimo”, dispara Simões, que exerce as funções pelos aplicativos Ifood, Rappi e Uber Eats .
Barba, 46 anos e com mais de dois anos atuando como motoboy, fala com convicção que os valores só diminuem ao passo que os aplicativos crescem e angariam mais colaboradores.
“Antes nós ganhávamos R$10,00 para rodar 5 km. Hoje em dia é R$ 5. A gente tem que trabalhar muito mais para tirar o mesmo valor que tempos atrás tirávamos com 8 horas de serviço.”
O paulistano conta que sai de casa às 9h para o trabalho, retorna às 15h para o almoço, descansa volta às ruas antes das 18h, permanecendo até depois das 23h.
“Dá umas 12 horas”, conta Barba, que opta por almoçar em casa justamente por não receber nenhum benefício alimentício das empresas: “Se eu ficar almoçando na rua todo dia, chega no final do mês e não sobrou nada.”
O iG procurou algumas das empresas de Delivery. O iFood disse que não houve alteração no valor das entregas . “Em maio, 51% dos entregadores receberam R$19 ou mais por hora trabalhada. Apenas para fins de comparação, esse valor é quatro vezes maior do que a hora paga pelo salário mínimo vigente no país”, disse a empresa, em nota.
Já a Uber Eats, declarou que os valores estão disponibilizados “de forma transparente para os entregadores parceiros, no próprio aplicativo, ficando clara cada taxa e valor correspondente”. Segundo a empresa, não houve alteração.
No entanto, Karen (nome fictício, a entregadora não quis se identificar), 24 anos e moradora de Niterói (RJ), afirma que a Uber Eats não cumpriu com os valores prometidos e depois alterou os termos de seu site oficial. Ela atua na modalidade de entregas por bicicleta .
“O site dizia uma coisa e quando comecei a trabalhar, foi outra completamente diferente. Diziam que a taxa variava de acordo com o local e que a taxa mínima por entrega não dava menos que R$ 5 e a quilometragem dava em torno de R$ 3. Eu li e reli isso várias vezes.
Depois que eu comecei a trabalhar vi que a quilometragem dava R$ 0,93. Simplesmente disseram que o valor sempre foi esse e que nunca houve mudança nos termos”, denuncia.
Os aplicativos não possuem relação de emprego formal com os entregadores, de acordo com o atual parecer do Superior Tribunal de Justiça (STJ). O argumento principal é o de que não há subordinação entre o entregador e o aplicativo.
Bloqueios e dívidas indevidas
A reclamação sobre bloqueios por parte do aplicativo foi unânime entre todos os entregadores ouvidos pelo iG . Barba conta que, dos aplicativos grandes, só sobrou a Rappi para trabalhar: “No Uber e Ifood eu já fui bloqueado”, diz. Ele denuncia, ainda, que em uma dessas situações, não recebeu o valor da corrida realizada.
“Eu tive um desentendimento com um atendente de um restaurante por causa da demora, fiquei uma hora esperando um pedido, contestei o restaurante e eles reportaram para o aplicativo, na minha frente. Nessa, o Ifood ligou para mim para entender o ocorrido, conversamos e eu desliguei achando que estava tudo bem. No dia seguinte eu fui trabalhar e estava bloqueado”, diz. “O pior é que não me pagaram a corrida até hoje, no valor de R$17,00”, lamenta.
Barba afirma também que a Rappi cobrou uma dívida do motoboy. “Eu fui pegar um pedido em uma adega grande aqui na Zona Leste, no valor de R$600,00. Chegando lá, o atendente disse que outro motoboy havia chegado antes e retirado o pedido. Eu falei ‘como já retirou se o pedido era pra mim e está aqui na minha tela?’ Fui embora sem o pedido e com a dívida na conta.”
“Falei com a empresa, me mandaram abrir um ticket (de reembolso), mas essa função do aplicativo não estava funcionando. Só após um mês foi que eu consegui receber o dinheiro no aplicativo, não na conta, que ainda vai demorar. Ou seja, são praticamente dois meses com um prejuízo de R$ 600. Se eu dependesse desse dinheiro para comprar um remédio ou pagar um aluguel, eu tava complicado”, declara.
Bloqueio “branco”
Paulo Galo faz outra a denúncia: a de que os aplicativos bloqueiam entregadores em retaliação às reclamações públicas e protestos dos entregadores.
“Tem o bloqueio oficial e tem o ‘bloqueio branco’, que é quando a gente faz reclamação pública. Isso começou a acontecer quando começamos a nos mobilizar e frequentar atos de protesto. O aplicativo rastreia quem está fazendo greve e no outro dia suspende a conta do entregador”, dispara.
A Rappi e o Ifood alegam que nunca houve qualquer retaliação por parte dos aplicativos aos manifestantes.
Medo e a falta de equipamentos
Os entregadores não têm a opção de trabalhar remotamente. Exercendo o trabalho nas ruas, todos os dias, os autônomos falam sobre o medo contrair o vírus causador da Covid-19.
“Um dos maiores problemas é o medo de trazer o vírus para a casa, para a família, ísso é um risco iminente”, afirma Paulo Galo. “Para nós, tem a pandemia e o pandemônio. A pandemia intensivou o pandemônio, então as dificuldades acabaram ficando ainda maiores”, diz o entregador, que além de reivindicar melhorias para a classe, participa de diversos atos contra atual governo de Jair Bolsonaro.
Segundo os entrevistados pelo iG , o auxílio com equipamentos de proteção e prevenção ao novo coronavírus (Sars-Cov-2) são quase inexistentes.
“Fizemos um abaixo-assinado, que já está com mais de 300 assinaturas, pedindo álcool em gel, máscara e alimentação. O Ifood começou a dar, mas é uma máscara por mês. Teve entregador que pegou dois tubos de álcool, porque achou que era pouco, e foi bloqueado pelo aplicativo por pegar um tubo a mais”, conta.
“Eles dão só pra falar que estão dando. Reza a lenda que eles destinaram um fundo de um milhão para os entregadores que foram infectados. Mas temos conhecimento de casos de companheiros que foram infectados e foram abandonados pelo aplicativo”, revela Galo.
Já Simões, diz que os materiais disponibilizados são de má qualidade. “Recebi uma máscara de péssima qualidade, um material que, sinceramente, eu não daria para um funcionário”, critica
“O Ifood diz que tem um auxílio para os infectados, mas é maior burocracia. O cara pega a doença, fica curado ou morre e ainda não recebeu a ajuda”, continua.
Karen, ciclista que trabalha para a Uber Eats e Rappi, diz que no município de Niterói (RJ) não ficou sabendo de entrega de máscaras e álcool em gel.
“Aqui em niterói, pelo menos, que é onde eu rodo, não distribuíram. Álcool em gel e máscara eu comprei do meu bolso e não tive nenhum reembolso. A uber ainda chegou a mandar um link dizendo que iria reembolsar, mas nunca aconteceu. Também não temos garantia caso fiquemos doentes.”
A greve
Paulo Galo, líder de um dos grupos mais ativos entre os grevistas, explica que o movimento é momento de união entre os motoboys .
“O entregador não tem que concordar com o posicionamento político um do outro para parar. Se a gente tem um sofrimento em comum, a gente tem que parar. A greve é a favor do aumento das taxas e de melhores condições. A gente apoia a greve, não somos donos dela”, diz.
Segundo ele, o vínculo empregatício dos entregadores tem que ser reconhecido. “Eles falam que esse é o tipo de emprego que o colaborador faz o horário dele. Mentira. Quem faz meu horário são minhas dívidas. Essa é uma visão dos entregadores antifascistas, não dos entregadores em geral. Tem um pessoal que realmente acha que é um empreendedor”, segue.
Barba não faz parte do coletivo de Galo, mas abraçou a causa com avidez: “No dia 1 de julho nós vamos para as ruas, tentar fazer a galera que não aderiu, aderir e lutar conosco. Essa semana estou mais mobilizando os motoboys do que fazendo entrega. A gente consegue mobilizar bastante gente”, diz.
Em seguida faz um contraponto: “Tem alguns que não concordam, que acham que são autônomos. Que autonomia é essa que você não tem nem direito a férias, 13º, condições mínimas? Tem só a autonomia de ficar sem fazer nada e também não receber nada”, conclui.
Simões, que vai paralisar em Niterói, reafirma que o movimento abrange todos os entregadores descontentes.
“Somos trabalhadores lutando por direitos. A greve é nacional e estamos recebendo mensagens de apoio até de companheiros de fora do país, da Colômbia, Argentina, Itália. Vamos parar e continuar mobilizando o pessoal até a situação mudar. O ato será totalmente pacífico, sem violência”, conclui.
(iG)