‘Essa lei é a lei da fome’: catadores se mobilizam contra proibição de carrinhos na Capital

‘Essa lei é a lei da fome’: catadores se mobilizam contra proibição de carrinhos na Capital

No meio de julho, catadores e catadoras de materiais recicláveis que atuam em Porto Alegre deram início a uma mobilização, por meio de uma petição online e de envio de e-mais pressionando os vereadores da Câmara Municipal, pedindo a revogação imediata da Lei nº 10.531, apelidada de Lei das Carroças ou de Lei Melo. A categoria busca impedir a proibição da circulação de veículos de tração humana dos catadores de materiais recicláveis nas ruas da Capital, prevista para setembro deste ano.

De autoria do então vereador Sebastião Melo (PMDB), a Lei das Carroças foi aprovada na gestão de José Fortunati (PDT) e começou a ser aplicada em setembro de 2013, proibindo desde então a circulação de Veículos de Tração Animal (VTA), movidos pela força de cavalos. Embora inicialmente buscasse proibir os VTA nas ruas da Capital, sob o argumento da proteção aos animais, após uma modificação, a lei passou a incluir os Veículos de Tração Humana (VTH), os chamados carrinhos, que são empurrados pela força dos próprios catadores. Um projeto do vereador Marcelo Sgarbossa (PT), aprovado no final de 2016, conseguiu prorrogar o prazo da proibição da circulação de carrinhos até 2020. Ainda, um novo projeto, o PL 022/20, também de autoria do vereador Sgarbossa, está atualmente em tramitação na Câmara e pede a ampliação do prazo de circulação dos carrinhos para mais quatro anos.

Segundo o integrante do Movimento Nacional dos Catadores de Materiais Recicláveis (MNCR) Alex Cardoso, os catadores e catadoras criaram a mobilização para pedir a revogação da Lei das Carroças e não mais apenas um adiamento do prazo para a implementação total dela, que já ocorreu em três ocasiões: em 2014, quando foi estendido para 2016, em 2016, quando foi novamente adiado para 2017, e a terceira em 2017, que permitiu a circulação dos carrinheiros até 2020. “Já fomos na Câmara, já fizemos diversas mobilizações e a discussão para ampliação do prazo. Por que fazer isso de novo, no meio da covid-19, se esse debate já foi feito duas vezes na cidade? É uma lei que tem que ser revogada e não adiar mais o prazo, para que não tenhamos que estar pedindo revogação novamente”, explica. “Não precisamos viver nessa violência psicológica de não saber se teremos ou não emprego em determinado tempo. Ela tem que ser revogada’, complementa Cardoso.

Ele explica ainda que, por conta da pandemia do novo coronavírus, os catadores e catadoras não estão se reunindo para promover a mobilização, a fim de evitar aglomerações. “Estamos fazendo algumas discussões online e as medidas principais são o envio dos e-mais para os vereadores e a petição. A ideia dos e-mais não é só de pressão, é de trazer um debate sobre a questão que envolve a cultura da reciclagem em Porto Alegre”, explica.

‘Essa lei é a lei da fome’

Para José Pedro Soares, de 43 anos, que trabalha há mais de 25 como catador, a restrição da circulação de carrinhos com tração humana irá resultar na perda de trabalho e renda dos carrinheiros da Capital, prejudicando diretamente suas família. “Proibindo os carrinheiros, muitas famílias vão passar fome, porque a maioria deles têm famílias, com filhos, esposa, marido. Como uma pessoa dessas vai sobreviver sem o trabalho dela? Eu acho que essa lei é a lei da fome”, afirma o catador, que é integrante da Cooperativa Paulo Freire. Segundo ele, essa situação já aconteceu com os catadores que utilizavam carroças após a implementação da proibição de veículos de tração animal em setembro de 2016: “Essa lei já vem prejudicando os trabalhadores desde que proibiu as carroças, porque naquela época muita gente passou fome, passou trabalho”.

Soares ressalta que, uma vez que o prazo final para a circulação dos carrinhos irá acontecer em meio à epidemia do novo coronavírus na Capital, os impactos serão inúmeros e colocarão os carrinheiros e carrinheiras em uma situação de ainda maior vulnerabilidade. “Essa mistura da proibição dos carrinhos com a pandemia vai ocorrer e aumentar ainda mais o número de pessoas na rua atrás de emprego e sem conseguir, porque está tudo fechado; a fome vai aumentar ainda mais, vai atrapalhar nos estudos dos filhos, nas vestes dos filhos e a pessoa não terá como comprar nada para a família”, explica.

A catadora Maria Elise Borges da Rosa enxerga a proibição de carrinhos como sinônimo de incerteza e de afastamento do trabalho que lhe garante o sustento. “Se eles tirarem nossos carrinhos, o que vai ser de nós? O que eu vou fazer?”, questiona. “Se me perguntarem se eu gosto de puxar carrinho, se eu faço o que eu gosto, eu vou responder que eu faço o que eu amo, que eu faço o que eu aprendi. O carrinho me ensinou a minha dignidade, que eu posso ter o que é meu, que posso criar minhas filhas sem prejudicar ninguém e ter uma vida razoável”, complementa Maria.

Aos 38 anos,Maria trabalha há mais de 20 como carrinheira em Porto Alegre. Foi na coleta de materiais recicláveis que ela encontrou uma fonte de renda para sustentar e alimentar suas duas filhas, que na época ainda eram bebês. “Eu comecei a coletar puxando carrinho de mão, carrinho de obra; comecei a puxar nas costas, levando nas minhas próprias mãos e a minha mãe nas dela”, lembra. Como não tinha dinheiro para comprar um carrinho, Maria propôs ao dono de um depósito de reciclagem Capital o empréstimo de um carrinho e que, em troca, ela venderia somente para ele os materiais que coletasse. “Ele topou na hora e assim eu comecei a puxar carrinho”, conta.

Anos atrás, Maria chegou a trabalhar em uma Unidade de Triagem, porém, apesar de ter aprendido muito sobre o valor dos materiais recicláveis, não se encontrou no trabalho e logo decidiu voltar a ser carrinheira. Há 10 anos, o depósito para o qual Maria vendia os materiais foi vendido, mas o antigo dono resolveu deixar o carrinho de presente para que ela pudesse continuar sustentando as filhas e realizando a coleta dos materiais pela Capital. Ela conta que o mesmo carrinho é usado como meio de renda até hoje por ela e por seu marido, que também é catador de materiais recicláveis. “Hoje é o meu marido que puxa os materiais na rua e traz pra casa. Eu ajudo a selecionar pra vendermos de 20 em 20 dias”.

Dentre as incertezas que a proibição dos veículos de tração humana despertam em Maria, ela ressalta o medo de não conseguir um emprego formal, já que não tem experiência em outras atividades. Além disso, por trabalhar há duas décadas como carrinheira, está habituada a ser sua própria patroa e criar sua rotina de trabalho. “Se tirarem o carrinho de nós e não assinarem nossa carteira, nós vamos ficar muito perdidos. Se proibirem os carrinhos, eu vou ter que pegar meu marido e minhas filhas, colocar um saco nas costas e ir pra rua de Porto Alegre começar a juntar PET e latinha e carregar nas mãos”, afirma. “Eles vão ver que tiraram os nossos carrinhos e seguimos coletando nos braços. Eles vão mandar arrancar meus braços? Vão dizer que eu não posso ir e vir?”, questiona Maria.

O catador Soares aponta que a proibição dos carrinhos não impactará somente nas vida dos catadores e catadoras, uma vez que os carrinheiros e carrinheiras atuam recolhendo diversos resíduos recicláveis nas ruas da cidade: “Muitas pessoas que acordam mais tarde nos condomínios não conseguem tirar o lixo para a rua antes da coleta seletiva passar, então, os carrinheiros são solução para eles, por exemplo. Os carrinheiros, além de fazer a coleta de recicláveis, também pegam móveis que não tem como dar destino, móveis bastante usados, que ninguém quer. Eles atuam em várias formas, não só na reciclagem, mas em várias outras formas de ajudar a comunidade de Porto Alegre”.

Desvalorização e criminalização

Para Maria, a futura proibição da circulação de veículos de tração humana é reflexo da desvalorização do trabalho prestado pelos catadores e catadoras de Porto Alegre: “As pessoas não se deram conta do serviço que os trabalhadores da reciclagem, os catadores, os carrinheiros, os médicos da natureza, que é como eu nos chamo, fazem. Elas nos desvalorizam”. Maria diz que seu sonho não é deixar de ser catadora, mas que o poder público assine a carteira de trabalho dos catadores.

“Tudo que eu queria era que vissem o valor do nosso serviço. Precisamos ser reconhecidos e essa é uma luta bem grave e triste, porque entristece saber que os políticos querem nos impedir de limpar a natureza, nos proibir de ganhar o nosso dinheiro digno do dia a dia”, afirma Maria.

Para Cardoso, não é apenas a desvalorização do trabalho dos catadores e catadoras que ocorre em Porto Alegre, mas sim um processo de criminalização do trabalho da catação e da desumanização das pessoas que atuam nesse ramo na Capital, nas ruas ou nas Unidades de Triagem (UTs). Ele entende que essa percepção se confirma com a Lei nº 10.531 e parte, principalmente, do poder público. “Existe hoje essa intenção de criminalizar o trabalho da catação, partindo em grande parte de uma desumanização do trabalhador, falando que não é um trabalho digno e, às vezes, até a mentira de que os catadores roubam a coleta seletiva. Para tu aniquilar, tu precisa desumanizar. Não tem como ver o catador como um trabalhador digno, como um ser humano, e aplicar uma lei tão severa, tão ruim, que não traz nada positivo. Então, para isso acontecer e não gerar uma reação da sociedade, precisa desumanizar o catador”, afirma.

Segundo ele, a criminalização se dará pelo risco de uma eventual prisão no caso de carrinheiros continuarem usando os veículos após a entrada em vigor da Lei. “Primeiro terá um processo de aviso, numa segunda abordagem irá prender o carrinho, numa outra irá prender o catador. Como fica a tua família?”, questiona. “A questão é que os catadores de rua já são excluídos e não têm um trabalho. Então, será a exclusão dentro da exclusão”.

De acordo com Soares, ao longo dos últimos anos, o programa Somos Todos Porto Alegre, lançado na gestão Fortunati após a aprovação da Lei, não foi eficiente na busca por oferecer qualificação aos catadores e catadoras da Capital e no preparo da categoria para quando os carrinhos fossem ser proibidos. Financiada pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), pela Braskem, Bunge e Celulose Riograndense, a iniciativa buscava promover cursos de capacitação para catadores e catadoras que iriam perder suas carroças e carrinhos com a implementação da Lei.

Dados de 2014 apontam que 1,7 mil trabalhadores informais estavam cadastrados no programa na época e que apenas 196 foram contratados até aquele ano. Segundo a Assessoria de Comunicação da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social e Esporte (SMDSE), o Programa parou de funcionar em 2017 devido ao fim dos investimentos que recebia. Soares, que integra há anos a mobilização dos catadores contra o fim da circulação dos carrinhos, afirma que até hoje “muitas pessoas não receberam ajuda” e que “os empregos prometidos, raramente alguém pegou”. “Aqui da nossa comunidade, uns quantos se inscreveram pros empregos e não foram chamados até hoje”, disse Soares, que também é representante da Associação de Moradores e Amigos da Vila Beira do Rio.

Maria relata que sua irmã, que também é catadora e atuava como carroceira, fez um dos cursos profissionalizantes e entregou sua carroça em troca de mais de mil reais, mas não conseguiu emprego. “Ela tá de novo como catadora, com carrinho de papeleiro, puxando, na mesma situação. O que que os cursos resolvem na vida do pobre sem o emprego? Eles não entendem que precisam nos dar planos pro futuro e não só dar um prato de comida hoje”, diz.

Conforme Cardoso, a falha do Somos Todos Porto Alegre foi ter sido construído de cima para baixo e ignorado o fato de que muitos catadores e catadoras gostam de trabalhar com a coleta de resíduos recicláveis utilizando os carrinhos e que possuem conhecimentos que são úteis para o serviço que prestam. “Imagina que as pessoas de um lugar vivam da economia da reciclagem, aprendem o que é PET, papelão, conseguem identificar o que tem dentro do saco sem nem abrir ele, olham um material e conseguem identificar quanto de material tem ali. Ignorar isso demonstra o processo da própria identidade dessa lei, que se dá por exclusão. Se busca apagar o trabalho dos catadores para dizer que vamos dar ‘um trabalho’, não reconhecendo o que já é feito”, explica.

Cardoso ressalta que outro impacto da criminalização de carrinhos será o aumento de resíduos recicláveis acumulados na Capital. “A coleta do município não dá conta hoje, mesmo com os catadores nas ruas. Então, imagina o que aconteceria se tivesse a proibição da circulação dos carrinhos? A Prefeitura teria que aumentar a frota, a equipe, o investimento na coleta seletiva, que é terceirizada, para poder dar conta. Alguém ganha e alguém perde com isso”. Hoje, a população de Porto Alegre produz 56 toneladas de resíduos recicláveis diariamente, porém, só 6% deles são, de fato, reciclados, segundo dados do Departamento Municipal de Limpeza Urbana (DMLU).

A reportagem procurou a Prefeitura de Porto Alegre em busca de um posicionamento sobre a mobilização dos catadores e catadoras e de informações sobre como se dará a implementação total da Lei e futuras fiscalizações, mas foi informada, pela Assessoria da Secretaria Municipal de Desenvolvimento Social e Esporte (SMDSE), que as secretarias municipais não estão autorizadas a falar sobre o projeto com a imprensa, uma vez que ele é da alçada de diversas pastas diferentes e ainda está sendo estruturado.

Fonte: Porto Alegre 24 Horas

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