O julgamento mais longo da história do Poder Judiciário do Rio Grande do Sul chega ao fim após 10 dias de trabalhos. Em torno das 18h, o Juiz Orlando Faccini Neto, que presidiu o júri durante, leu a sentença, após a conclusão condenatória.
Quase 9 anos depois do incêndio na Boate Kiss, em Santa Maria, que vitimou 242 pessoas e deixou outras 636 feridas, os quatro réus foram condenados pelo Conselho de Sentença do Tribunal do Júri:
Elissandro Callegaro Spohr: 22 anos e 6 meses
Mauro Londero Hoffmann: 19 anos e 6 meses
Marcelo de Jesus dos Santos: 18 anos
Luciano Bonilha Leão: 18 anos
O regime inicial é fechado. O Tribunal do Júri foi presidido pelo Juiz de Direito Orlando Faccini Neto. O magistrado chegou a decretar a prisão dos réus, mas um Habeas Corpus preventivo concedido pela 1ª Câmara Criminal do TJRS suspendeu a medida. Agora, deverá ser analisado pelo colegiado.
“Os dados do processo indicam, sem qualquer margem para dúvida, a presença de intenso sofrimento, decorrente das razões pelas quais morreram as vítimas. Quem, num exercício altruísta, por um minuto apenas buscar colocar-se no ambiente dos fatos, haverá de imaginar o desespero, a dor e o padecimento das pessoas que, na luta por sua sobrevivência, recebiam, todavia, a falta e a ausência de ar, os gritos e a escuridão, em termos tão singulares que não seria demasiado qualificar-se tudo o que ali foi experimentado ao modo como assentado pela literatura, “o horror, o horror”, refletiu o Juiz.
Na decisão, o magistrado mencionou a dor das famílias ante a perda de seus filhos. Referiu que um juiz do júri acaba se deparando inumeráveis vezes com pais ou mães que comparecem em audiências ou plenários chorando a morte dos seus filhos. “Isso, entretanto, nunca pode ser naturalizado e, mais do que isso, parece potencializado quando a experiência da morte deixa de ser algo individual para constituir-se numa dimensão coletiva. Foram mais de 240 mortes e a expressividade do número de vítimas não divide ou arrefece as dores ou tragédias pessoais, multiplica-as.”
Caso
Em 27 de janeiro de 2013 a Boate Kiss, localizada na área central de Santa Maria, sediou a festa universitária denominada “Agromerados”. No palco, se apresentava a Banda Gurizada Fandangueira, quando um dos integrantes disparou um artefato pirotécnico cujas centelhas atingiram parte do teto do prédio, que era revestido de espuma, que pegou fogo. O incêndio se alastrou rapidamente, causando a morte de 242 pessoas e deixando mais 636 feridos.
O Ministério Público é o autor da ação penal. Inicialmente, aos quatro foi imputada a prática de homicídios e tentativas de homicídios, praticados com dolo eventual, qualificados por fogo, asfixia e torpeza. No entanto, as qualificadoras foram afastadas e eles respondem por homicídio simples (242 vezes consumado e 636 vezes tentado).
Elissandro Callegaro Spohr e Mauro Londero Hoffmann eram sócios da casa noturna. Marcelo de Jesus dos Santos era vocalista da Banda Gurizada Fandangueira. E Luciano Bonilha Leão, o auxiliar do grupo musical.
Mauro Londero Hoffmann, sócio da Boate Kiss, se defendeu das acusações dizendo que era apenas investidor da casa noturna e que não acompanhava as decisões tomadas por Elissandro, o sócio-administrador do local. Afirmou que sua condição para ingressar na sociedade era que a documentação estivesse em dia e que fosse concluída a reforma que Kiko fazia no espaço para corrigir o vazamento acústico que incomodava os vizinhos, cumprindo, assim, o estabelecido pelo Ministério Público no Termo de Ajustamento de Conduta (TAC), que apurava o caso. “Todo e qualquer fato administrativo da boate eu não fazia parte. Eu não tinha nem a chave da Boate Kiss”.
Marcelo de Jesus dos Santos afirmou em juízo que era de conhecimento geral (inclusive da Boate Kiss) que a Banda Gurizada Fandangueira utilizava os recursos pirotécnicos nas suas apresentações. “Todo mundo sabia, nunca foi escondido de ninguém”. Contou que estava no palco, com o artefato na mão, alcançado pelo colega, Luciano. Estava com a mão para o alto e que, de repente, viu que começou o fogo. Lembrou que tentaram usar o extintor de incêndio, mas que este não funcionou.
Teses defensivas
Responsável pela denúncia que colocou os quatro acusados no banco dos réus, o Ministério Público pediu a condenação deles por homicídio simples com dolo eventual (quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo). O Promotor de Justiça David Medina da Silva, a Promotora Lúcia Helena Callegari e os Assistentes de Acusação, Advogados Amadeu Weinmann e Pedro Barcellos, sustentaram seus argumentos em plenário.
“Colocar fogo num lugar cheio de gente é crime doloso”, afirmou Medina. “Condenem os quatro! Eles têm responsabilidade e não podem passar ilesos! A história não pode ser repetida! Todos nós choramos por Santa Maria, mas não podemos chorar de novo. Se desclassificarem ou absolverem, estarão dizendo: façam, que não dá nada”, afirmou Lúcia. Já o Advogado criminalista Amadeu Weinmann defendeu que “242 pessoas morreram por falta de iluminação para orientar a saída, de extintor de incêndio. Isso é o que traz o dolo. Não cumpriram uma obrigação legal de manter a proteção dos habitantes das boate à noite”.
A defesa de Kiko, representada pelo advogado Jader Marques, pediu a desclassificação para outro crime, que não o doloso. “Não determinem a condenação dessas pessoas por dolo eventual”, pediu o Advogado. “O raciocínio de que eles sabiam o que estavam fazendo é ridículo, é absurdo”.
Já a defensora de Marcelo, Advogada Tatiana Borsa, pleiteou ao Conselho de Sentença a absolvição do cliente. Marcelo “jamais imaginou tirar a vida de jovens. Tirar a vida de quem dava comida, o sustento para ele e para a família dele”.
Os Advogados Mário Cipriani e Bruno Seligman de Menezes defendem Mauro Hoffmann. Eles pediram absolvição, desclassificação de crime ou participação reduzida para o empresário. “A defesa pede que reconheçam a materialidade (houve mortes), mas, na condição de investidor, Mauro não teve ações ou omissões que tenham concorrido penalmente para a práticas do resultado. Ele vai seguir respondendo no âmbito cível”, ressaltou Seligman.
A absolvição também foi o pleito da defesa de Luciano. “Condenar por dolo eventual seria a coisa mais absurda da vida”, disse o Advogado Jean Severo aos jurados. “Vocês acham que esse roadie queria a morte de 242 pessoas? Será que isso é fazer justiça?”, questionou o defensor.
Fonte e Foto: TJ RS