Ângela* conta que o relacionamento com Rodrigo* começou com uma amizade e levou cerca de um ano até virar namoro, no início de 2020. “Ele era super tranquilo, super de boa, a mãe dele me aceitava, o pai dele também”.
Logo após o início da relação, Ângela teve um aborto espontâneo e o casal se separou, mas acabaram retomando, passaram a morar juntos na casa dos pais dele, em Canoas, e ela engravidaria mais uma vez. “Aí ele começou a mudar”, diz.
Ela conta que Rodrigo estava desempregado e não queria mais buscar emprego, passando a fazer uso de drogas. “Ele começou a ficar muito agressivo. Puxava meu braço, me deixava marcada. Eu falava: ‘tu não é assim, não agia assim’. E ele: ‘mas é assim’”.
O primeira tapa veio quando Ângela* estava com três meses de gestação. Rodrigo pediu perdão, ela aceitou. “Boba, a gente cai no conto. Como eu gostava dele, perdoei”.
Ângela diz que Rodrigo chegou a ficar dois meses “de boa” e as agressões cessaram. Mas, quando o hábito voltou, pioraram. Passaram a ser diárias.
A Defensoria Pública do Rio Grande do Sul divulgou no início de novembro o seu relatório anual. No documento informa que, entre outubro de 2020 e setembro deste ano, o número de atendimentos relacionados a violência doméstica aumentou em 70% na comparação com os 12 meses anteriores, passando de 10 mil para 17 mil. O relatório aponta também que o número de ações na Justiça apresentadas por defensores aumentou 257% no período quando comparados os dados com o relatório anterior.
A defensora pública Tatiana Kosby Boeira, do Núcleo de Defesa da Mulher (Nudem), explica que o relatório utiliza dados do Portal de Atendimentos da Defensoria, onde são lançados todo os atendimentos feitos por defensores públicos, seja presencial ou remotamente, assim como os peticionamentos em processos físicos e eletrônicos.
Segundo ela, os dados do relatório “acenderam o alerta” sobre o aumento de ações relacionadas à violência doméstica, o que levou o Nudem a buscar fazer um diagnóstico da situação. A primeira questão que pontua é que o atendimento remoto, aperfeiçoado durante a pandemia, facilitou o acesso das vítimas ao órgão. O segundo fator que acredita ter influenciado são as campanhas para que as vítimas de violência doméstica denunciem seus agressores e procurem ajuda. “As pessoas estão começando a se conscientizar sobre a importância de fazer a denúncia”, diz.
O terceiro fator que ela considera ter influência seria a pandemia de covid-19. A defensora observa que os números de crimes contra o patrimônio e de homicídios não vinculados à violência doméstica reduziram durante a pandemia em decorrência da redução da circulação de pessoas, mas que esta redução da mobilidade provocou o aumento de crimes que ocorrem no âmbito familiar.
“O principal deles é a violência contra a mulher. Isso aumentou muito, por conta de vários fatores. A gente tem essa cultura machista e é uma situação que vem crescendo, mas, a partir do momento que tu obriga as pessoas a ficarem todas dentro de uma mesma casa, sem poder sair. Aí eles não têm acesso a quase nada, passam por dificuldades econômicas, estão usando drogas, abusando do álcool, o que já existia antes só piora. A procura por renovação de medida protetiva, a informação de que foi descumprida a medida protetiva, homens que estavam afastados do lar e queriam voltar e aí a permissão para que volte gerou um novo ato de agressão, que vai num novo boletim de ocorrência. Isso chamou a atenção”, diz. “Eu penso esse conjunto de situações que fez com que a gente tivesse um aumento tão significativo pelos serviços da Defensoria nessa área”, afirma a defensora Tatiana.
Tatiana ressalva que os números de atendimentos e peticionamentos não significam que houve aumento na mesma proporção de casos de violência doméstica, uma vez que envolvem uma ampla gama de ações da Defensoria. Ela explica que os peticionamentos na área de violência doméstica podem envolver defensores peticionando pela defesa do agressor, peticionamentos da própria vítima que está assistida por um defensor público, de familiares das vítimas que resolvam interceder judicialmente e outras movimentações de processos já existentes.
Além disso, destaca que, no Rio Grande do Sul, existem varas de Justiça especializadas em violência doméstica que estão acompanhando questões que vão além dos casos de agressão, mas também disputas relativas à guarda dos filhos entre agressor e vítima, disputas pelo pagamento de pensão alimentícia, divórcios, etc.
“Algumas varas de violência doméstica, como a de Porto Alegre, têm essa natureza híbrida, tu consegue fazer com que todos esses processos tramitem ali. Existe um entendimento hoje, que ainda é minoritário, de que todas as questões envolvendo a mulher vítima de violência ou aquele casal que está naquela situação devem tramitar na vara especializada, não ir uma parte para a vara de família, outra para vara civil e outra para a criminal”, diz.
Já atendimentos, explica, vão desde mulheres que foram agredidas, fizeram o registro na delegacia e estão precisando de acolhimento para serem encaminhadas pela rede de proteção para uma moradia segura, a postulação do divórcio, pedido de pensão alimentícia para crianças, a regularização da guarda, pedidos de medida protetiva, de renovação de medida protetiva ou informes de descumprimento das medidas. Além disso, há peticionamentos de vítimas pedindo atendimento à saúde, incluindo atendimento psicológico. “Mais o mais comum mesmo é a questão da medida protetiva e descumprimento de medida protetiva”.
Certo dia, Ângela estava dormindo na cama com o filho mais velho, de outra relação, quando Rodrigo chegou de uma partida de futebol e, segundo conta, a acordou a socos. “Ele estava transtornado, tentou agredir o meu filho. Os pais dele acordaram e tiraram o meu filho, mas ele continuou me agredindo. Rasgava as minhas roupas. Ele quebrou toda a casa”.
Ângela disse que iria embora, mas Rodrigo não deixou. Pegou uma panela de água fervendo e tentou jogar nos pés da criança. Ângela se colocou na frente, queimou os pés. Rodrigo trancou todas as portas, prendendo os próprios pais dentro de casa. “Eu falo e me dá uma agonia”.
Apesar de também ser ameaçado, o pai do agressor conseguiu ligar para a Brigada Militar, que ainda demoraria cerca de uma hora para chegar ao local. “Ele disse que eu só sairia dali morta.”
Quando a BM chegou, Rodrigo disse que estava “incorporado e não se lembrava de nada”.
Ângela foi escoltada até a casa de uma comadre. “Não deu uma hora que eu estava lá dentro, ele passou na frente. Ele não me viu, daí a minha comadre fechou a porta. Ele viu e fez a volta e sentou na esquina”.
Chamaram a Brigada de novo, mas Rodrigo não foi preso.
Ângela foi então para a casa da irmã, em Cachoeirinha. Depois de três dias, voltou para a casa da mãe, em Canoas, que fica próxima à casa dos pais de Rodrigo. “Começaram as agressões tudo de novo. Ele jogava tijolos na janela da minha mãe, jogava pedra, tentou agredir meu padrasto, deu um soco no olho da minha mãe”, relata.
O bebê de Ângela nasceu em março, quando ela já havia conseguido se separar de Rodrigo.
Por meio das Promotoras Legais Populares (PLPs), lideranças comunitárias capacitadas em noções básicas de Direito e direitos humanos das mulheres, Ângela conseguiu auxílio para alugar a casa em que mora com os filhos, em um bairro de Canoas cujo endereço o ex-companheiro e agressor desconhece.
Hoje, Ângela conta com uma medida protetiva contra Rodrigo, a qual ele não respeitaria.
“Eu evito visitar a minha mãe, para ver a minha vó e a minha bisavó de 91 anos, porque ele mora no prédio ao lado. Ele já foi preso 3 vezes depois que nos separamos, mas é sempre solto”, diz.
A última vez em que Rodrigo cruzou o caminho de Ângela foi em outubro passado, quando ela foi ao aniversário de uma tia, quase vizinha de sua mãe e, por tabela, também do ex. “Ele tá passando de carro com o irmão. Ele se tocou do carro e eu só vi quando ele puxou o bebê do meu braço”.
Ângela acionou a Polícia Civil por violação de medida protetiva, mas, mais uma vez, Rodrigo foi preso e liberado em seguida. “Ele não tem medo de nada. Ele falou que, se for preso, fica uns anos lá e depois faz tudo de novo. É uma coisa que eu penso que nunca vai acabar, mas, se a gente baixar a cabeça, não vai viver. Eu tenho que trabalhar, tenho dois filhos para sustentar”.
A violência não é só física, mas também psicológica
“É aquela história que tu não sabe como aconteceu com uma pessoa como tu”, diz Vanessa*, hoje com 42 anos.
A história dela começa em 2013. Bancária, concursada com um bom emprego no Banco do Brasil, casa própria em Porto Alegre, carro e boas condições de vida, ela conheceu Anderson, hoje com 38 anos, em um momento da vida em que nutria o sonho de se casar.
“Ele era a vítima da vida, conseguia emprego, mas não parava porque o chefe era ruim, tinha sofrido violência em casa. E eu comprei aquela história. Queria muito que desse certo. Só que hoje, olhando de fora, eu via claramente os sinais, mas eu nunca tinha passado por uma situação de relacionamento abusivo”.
O caso de Vanessa, segundo conta, não envolve agressões físicas repetidas, mas outro tipo de violência, a psicológica. Desde o começo do namoro, Anderson tinha ciúme excessivo, com frequência pedindo que ela trocasse de roupa antes de sair para o trabalho. “Me chamava de palavras de baixo calão, me chamou de vagabunda numa briga e outros termos pejorativos”, relata Vanessa, relembrando o início da relação.
As brigas foram ficando mais frequentes, mas sempre acabavam fazendo as pazes. “Eu sempre pensava nele, que ele tinha passado por traumas. Se a roupa atrapalha, quem sabe eu visto outra”.
Ela diz que achava que “não custava ceder”, embora não visse motivos nas roupas que escolhia vestir. “E mesmo que usasse, não seria motivo”.
Quatro meses depois do início do namoro, passaram a morar junto. Vanessa fiz que Anderson foi passando cada vez mais tempo em sua casa, deixando as coisas, até o momento em que decidiu ficar permanentemente. “Hoje eu sei que ele espalhou que tinha ficado com uma coroa com dinheiro, mas a diferença é só de quatro anos”.
Quando passaram a morar juntos, além do ciúme, Anderson começou a se incomodar com as visitas dos pais de Vanessa. Dizia que não tinha cabimento a frequência. Vanessa cedeu. “Tudo eu fui aceitando e, se tu me perguntar, eu não sei o porquê”.
Em um momento que ele estava desempregado, Vanessa abriu uma empresa para o companheiro. Nos momentos em que estava trabalhando, a relação “dava certo por um tempo”, mas ele continuava agressivo e cada vez mais controlador.
Chegou ao extremo de instalar um aplicativo “espião” no celular de Vanessa que permitia que ouvisse as conversas que ela tinha e acessasse a câmera do aparelho. “Eu nem sabia que existiam essas coisas.”
“Uma vez eu fiz uma brincadeira com uma colega do banco e ele me ligou dizendo: ‘eu tô indo aí’. Apareceu no banco e ficou uma hora me cobrando que eu estava falando de um cara com uma amiga”.
Olhando para trás, Vanessa vê que as agressões não eram apenas psicológicas, pois ele avançava para arrancar o celular de suas mães. “Hoje eu vejo que é violência, mas na época eu achava que eu pudesse ter feito alguma coisa”.
A defensora Tatiana diz que, apesar do aumento no número de ações envolvendo violência doméstica na Defensoria, sabe-se que os casos que chegam ao órgão são apenas uma fração dos que acontecem. Além disso, avalia que, nos casos em que a vítima sofre abuso psicológico, ainda há um grande desafio por parte do poder público, tanto do ponto de vista de identificá-los, como em lidar com eles e mesmo provar que estejam acontecendo.
“A gente tem conversado com promotores de Justiça e com o Judiciário sobre como a gente vai estabelecer, por exemplo, um nexo causal. Uma mulher sofreu um assédio, um abuso psicológico, uma agressão psicológica há um ano e ela vai apresentar os sintomas de depressão um ano depois. Como tu vai conseguir provar que aquela depressão ou aqueles problemas psiquiátricos são oriundos daquela agressão que ela sofreu um ano atrás. Isso precisa ter uma perícia mais bem estabelecida, estudar como vai se fazer essa prova. Porque, às vezes, o intervalo de tempo é maior, não é tão automático. Uma mulher sofre durante seis meses violência psicológica, fica quieta, e daí daqui a um ano e meio vai apresentar síndrome de pânico, dificuldade no trabalho. Como é que tu vai estabelecer uma conexão entre aquilo que aconteceu? Ainda é um crime muito difícil de fazer essa prova. Também é complicado de quantificar, porque falta inclusive a percepção de que aquilo é uma hipótese de violência psicológica, a gente não reconhece muito bem o que é um ato abusivo ou agressivo de violência psicológica”, avalia.
No entanto, a defensora afirma que a violência psicológica, em geral, é o começo de tudo. “Quantas mulheres estão sofrendo violência psicológica, estão sendo assediadas moralmente e não denunciam, ou nem sabem que isso significa assédio moral ou violência psicológica? Vão aceitando, achando que é normal, não denunciam, enfim, não buscam ajuda, e daqui a pouco tu acaba só buscando ajuda quando a situação é mais crítica, com a violência física”, diz.
Tatiana avalia que as campanhas de conscientização sobre violência doméstica também precisam envolver o componente psicológico. “A gente ainda tem isso de que é normal, de que faz parte do relacionamento, acho que vai precisar ainda de muito conscientização, e não só das camadas menos favorecidas da população. Inclusive nas camadas mais favorecidas falta informação sobre qual é o limite do que é aceitável e do que não é. Vai demorar um tempo para a gente educar as pessoas em direitos”
Vanessa engravidou. E a situação degringolou. “Ele achou que eu estava no papo e nunca mais ia largar ele”.
Conta que começou a ser ameaçada de que, se terminasse o relacionamento, Anderson fugiria com a criança. “Depois de dar à luz, eu perdi 15 kg em relação ao que eu tinha antes. Estava muita magra, comecei a perder muito peso e a ficar doente”.
Além disso, Anderson fez dívidas no nome de Vanessa. “Ele comprava carro, destruía moto, e eu sempre dando para não me incomodar. Chegou num ponto que eu também comecei a não ter mais grana, ele começou a ficar mais disperso”.
Após a gravidez, o homem não trabalhava e não ajudava, e só jogava videogame. E começou a traí-la. “Ele queria viver na minha casa, com o meu conforto e me tirar da jogada”.
A separação só ocorreu em março de 2020, após um dia em que o filho do casal ficou doente. “Ele jogou videogame o dia todo no sábado e não me ajudava. Eu não conseguia mais e o bebê chorando, com a bunda assada de tanta diarreia. Aí eu fui falar com ele e ele disse que eu estava louca. Ele tinha o hábito de me chamar de louca o tempo todo”.
Ela diz que, naquele dia, durante a briga, Anderson chegou a ligar para o pai de Vanessa na certeza de que ele ficaria do lado dele. A briga só terminou quando Vanessa conseguiu chamar a Brigada Militar.
Hoje, o filho do casal está com quase quatro anos. Vanessa tem uma medida protetiva contra Anderson, mas segue sendo perseguida pelo ex. “Agora ele arranjou uma namorada e ela tentou quebrar o meu carro. Ele tenta dizer que é por causa do filho, mas nunca quer pegar o filho”.
Ela afirma que a Justiça permitiu, em março deste ano, que Anderson visitasse a criança em determinados dias da semana, que ela não respeitaria. “Um dia ele pegou no dia que era e nos outros me incomodou nos dias que não eram. Ele tenta ter acesso a mim até hoje, não acredita que perdeu o poder de acesso a mim. Eu não falo com ele desde que saiu de casa. Nunca mais falei com ele. Tenta, manda mensagem, invadiu a minha casa no ano passado. Ele quebrou a protetiva umas 15 vezes, foi preso em três oportunidades, soltaram ele, porque a Brigada não levava ele em flagrante”.
Vanessa conta que já foi entrevistada para outra reportagem sobre violência doméstica no ano passado, mas diz que, na época, não estava pronta para contar sua história. Desta vez, afirma que decidiu compartilhá-la para estimular outras mulheres a procurarem ajuda.
“Eu me envergonhei por muito tempo de ter passado por isso e hoje eu enxergo que, se a gente é vítima, não deveria sentir vergonha”, diz.
*Os nomes das vítimas e dos agressores foram alterados para preservar a integridade física das envolvidas.