‘Corrida ao comércio para o Natal é tudo que o vírus precisa’.

‘Corrida ao comércio para o Natal é tudo que o vírus precisa’.

Não foi por falta de aviso. O mês de novembro se aproxima do final com o Rio Grande do Sul, Porto Alegre e outras capitais do País sofrendo com o aumento de contaminações pelo novo coronavírus, crescimento de internações em leitos clínicos, de UTI e mortes. O alerta tem sido dado por pesquisadores e médicos faz algum tempo. Ao longo do mês de outubro, os dados já mostravam a reversão de tendência, ou seja, a média móvel da taxa de crescimento de novos casos começou a mudar de sinal, indo do negativo para o positivo nas maiores cidades do interior do Estado e na capital gaúcha.

“Não tem que esperar aparecer no gráfico (o aumento da contaminação), não tem que esperar o número dobrar a cada dez dias. Quando isso acontece, quer dizer que já passou”, disse à reportagem do Sul21, no começo de novembro, o cientista de dados Isaac Negretto Schrarstzhaupt, colaborador da Rede Análise Covid-19. Dias depois, a Rede lançou uma carta aberta à Prefeitura de Porto Alegre, na qual alertou sobre a “reversão de tendência” nos números de novos casos de covid-19 e enfatizou o risco de reaberturas de atividades não essenciais.

“Ao analisarmos as internações em leitos clínicos (casos mais leves e de menor faixa etária) percebemos que existe uma clara reversão de tendência, pois a taxa de queda de casos passou a ser taxa de crescimento”, destaca a carta, divulgada dia 5 de novembro. “Como ainda não estamos passando por um crescimento exponencial, o que ocorre quando se observa esta reversão de tendência nos casos é uma queda cada vez mais lenta, que depois se transforma em uma estabilização e depois em um crescimento de casos. Como a doença tem o potencial de gerar um crescimento exponencial, isto pode gerar um aumento repentino a qualquer momento”, explicou o documento.

Vinte dias depois, Porto Alegre tem, nesta terça-feira (24), 249 pessoas em situação grave internadas nas UTIs da cidade, isso depois desse número ter baixado para menos de 200. E o governador Eduardo Leite (PSDB) voltou a fazer transmissão pela internet, nesta segunda-feira (23), para dizer que o número de pacientes com covid-19 internados simultaneamente em leitos clínicos no Estado atingiu o pico neste domingo (22), com 1.002 pacientes, superando o recorde anterior de 995 pacientes, registrado em 29 de julho. A realidade se impôs.

Agora, faltando 30 dias para o Natal, pesquisadores voltam a alertar para o grande risco que as reuniões familiares poderão representar. A esperança, novamente, é a de que autoridades e a população adotem medidas concretas para minimizar o risco de nova explosão de contaminação.

15 dias antes e 15 dias depois
Pesquisador em saúde pública do MAVE/Fiocruz e coordenador do InfoGripe, Marcelo Gomes diz estar preocupado e angustiado com a proximidade do fim do ano. A causa do sentimento é o cenário de tendência de alta de contaminação ou estabilização de casos em patamares muito elevados em diversas localidades do País. Gaúcho, residindo atualmente na cidade do Rio de Janeiro, Gomes tem “um pé no Alegrete e outro em Porto Alegre”, e vê com preocupação o momento da pandemia na capital gaúcha e em todo o Brasil. Afinal, as festas de fim de ano são datas em que tradicionalmente as famílias se reúnem, combinada com o estímulo ao comércio nas semanas que antecedem o Natal.

“Temos um período do ano que é extremamente propenso a aglomerações e reuniões. Temos o evento pré-Natal, que é a corrida ao comércio, com lojas lotadas, e isso é tudo o que o vírus precisa, ainda mais nesse cenário em que estamos de interrupção de queda. A gente ainda tem bastante gente suscetível, estamos interrompendo a queda com casos muito altos, então o risco é muito grande de novas infecções, e estamos na iminência de estar num período em que a interação é extremamente forte”, analisa o coordenador do InfoGripe, boletim de monitoramento de casos de síndrome respiratória aguda grave feito semanalmente pela Fiocruz e que tem sido um dos mais importantes documentos de análise da crise do coronavírus no Brasil.

Gomes destaca o risco do Natal ao propiciar a mistura de grupos que conseguiram se manter isolados ao longo do ano, assim como diferentes classes sociais e familiares de diferentes faixas etárias. “É um caldeirão extremamente preocupante”, define.

A situação é potencialmente perigosa porque, uma semana depois do período de compras, quem tiver sido infectado se reunirá com familiares e amigos no Natal, possivelmente na fase ativa da transmissão do vírus. “E então teremos os avós em contato com os mais jovens, e mesmo que esses avós tenham se cuidado e feito compras on-line, se o resto da família fez compra presencial, então danou-se, todo o cuidado não terá sido suficiente”, explica o pesquisador da Fiocruz. E arremata: “Não dá para agora no final do ano jogar fora todo o cuidado que se teve o ano inteiro. É triste, mas é a situação que ainda estamos vivendo”.

O coordenador do InfoGripe reconhece ser muito complicado acreditar que as pessoas não irão querer se encontrar no Natal. Ainda assim, ele estimula que quem tiver condições de não se reunir, inclusive condições emocionais, é o melhor a ser feito. “Temos o ideal e o real, e temos que lidar com as duas coisas. O ideal é que não tenha o encontro, mas se tiver, fazer um isolamento forte nos 15 dias anteriores ao encontro, para minimizar o risco.”

A fórmula 15 dias antes e 15 dias depois é a sugestão do pesquisador para famílias que desejam se encontrar no Natal. Uma quarenta forte 15 dias antes poderá minimizar o risco de contaminação na noite de Natal. “Isso vai reduzir o risco de se infectar e, portanto, estar transmitindo na época da festa”, explica Gomes.

O mesmo cuidado, alerta o coordenador do InfoGripe, precisará ser adotado nos 15 dias seguintes para evitar que eventuais infectados espalhem ainda mais o vírus. Nesse sentido, o pós-Natal pode ser tão delicado quanto o pré, pois a eventual contaminação no dia de Natal poderá causar um “efeito dominó” nas semanas seguintes. “Se puder, também é recomendado fazer isolamento nos 15 dias após o Natal. Assim, caso a pessoa tenha sido infectada, ela pode interromper a cadeia de transmissão e minimizar o risco de contaminar outras pessoas. Será um desafio tremendo.”

Além do isolamento antes e depois do Natal, Gomes também cita que deve ser dada preferência para compras on-line e, na reunião familiar, privilegiar ambientes abertos, ao ar livre. O pesquisador ainda enfatiza o alto risco de famílias de maior renda contratarem pessoas para trabalhar na limpeza ou em outras tarefas domésticas da casa, atitude que irá expor ao risco esse trabalhador e também sua família. “É muito cruel colocar a pessoa numa situação de ter que escolher entre o complemento da renda e a exposição ao vírus”, afirma.

O pesquisador da Fiocruz enfatiza que a situação imposta pelo vírus faz com que as escolhas não se baseiem naquilo que gostaríamos. O melhor a ser feito é levar em conta os ensinamentos apreendidos com a maior crise sanitária dos últimos 100 anos. “O que a gente quer não importa, é o que a situação epidemiológica demanda. E é nisso que trabalhos, como o InfoGripe pode auxiliar, para que as autoridades tenham subsídios para embasar suas ações. Não é o achismo ou o que eu quero, é o que a situação está demandando. É isso que tem que embasar nossas ações.”

Quem não tem teste, caça com SRAG

O InfoGripe é uma vigilância epidemiológica de casos definidos a partir de sinais e sintomas de pacientes atendidos na rede hospitalar, incluindo pacientes que morrem sem terem sido hospitalizados, mas cuja investigação chega à conclusão de que a pessoa morreu com sintomas de síndrome respiratória aguda grave (SRAG). O sistema permite acompanhar como estão circulando no país os diferentes vírus respiratórios existentes, além de detectar a introdução de novos vírus respiratórios no País, cuja manifestação clínica seja similar à definição de síndrome respiratória aguda grave.

A investigação laboratorial também é importante. O protocolo estabelece que todo caso de SRAG deve ser testado para identificação do vírus. A vigilância é universal, abrangendo todas as unidades de saúde com hospitalização.

“Todo e qualquer óbito, associado a esse tipo de evento, deve ser notificado. Os resultados laboratoriais, mesmo que a gente não consiga testar todos os eventos (casos), a gente pode trabalhar com a ideia de amostra. Se tem algum vírus que está dominando fortemente essa amostra que está sendo testada, isso nos dá uma informação bastante razoável sobre tudo o que está acontecendo, e que esse vírus é o principal causador desses eventos. É isso que temos hoje com o novo coronavírus”, explica Marcelo Gomes.

No último boletim Infogripe, relativo à semana epidemiológica 46, compreendida entre os dias 8 e 14 de novembro, o novo coronavírus foi responsável por 97,7% dos casos de SRAG. “Isso nos permite continuar usando a síndrome respiratória aguda grave para fazer análise da situação, mesmo sem ter que esperar o resultado laboratorial”, explica Gomes. “O fato de que a gente não consegue testar todo mundo, dentro desse cenário, não chega a ser um grande problema para a análise da situação. Ele complica a ação, porque não conseguimos fazer, por exemplo, a busca ativa, mas não nos impede de fazer a análise da situação e acompanhar como está a evolução.”

O acompanhamento do InfoGripe oferece uma informação, digamos, do passado, porque já capta os casos graves, que representam um estágio mais tardio da doença, considerando que há o tempo entre a pessoa se infectar até desenvolver um quadro grave o suficiente para necessitar de internação ou morrer. No caso do Brasil, a análise de situação precisa ser feita num cenário não ideal, decorrente da falta de ampla testagem.

“Embora seja uma informação ligeiramente atrasada em relação à cadeia de transmissão, o boletim traz um avanço grande em relação ao problema do atraso da digitação, do tempo entre a ocorrência e a entrada no banco de dados. Isso auxilia a tomada de decisão porque traz a possibilidade de um retrato mais próximo. Embora não seja exatamente o que está acontecendo hoje, ele está muito mais próximo”, explica o pesquisador da Fiocruz.

Gomes diz que tal informação, usada em conjunto com outros indicadores, como a taxa de ocupação de leitos hospitalares e dados de atendimento ambulatorial, permite a avaliação mais adequada do que está ocorrendo nas cidades, estados e no País. O passo seguinte deve ser a adoção de medidas preventivas.

No caso de Porto Alegre, o coordenador do InfoGripe faz o alerta: “No momento atual, quando começamos a observar a mudança de tendência em locais que estão há um longo período em estabilidade ou que estavam em queda, e que estão dando sinais de interrupção de queda ou início do crescimento, ainda é uma ação que pode ser tomada cedo, ainda é um processo inicial porque a maioria desses locais não está com ritmo forte de aceleração e já voltando a patamares extremamente altos. Ainda estamos no começo do processo, então ainda dá tempo de tomar ações”, explica Gomes.

Mais uma vez, não será por falta de alertas.

Fonte Sul 21

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